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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma dor bate em sua porta - Alfred - 02

Mais um belo dia exibia exoticamente seu rosto iluminado. Por alguma razão a previsão do tempo falhara, ocasionando diversos falatórios sobre o assunto no departamento onde Alfred trabalha. Já era fim de expediente e o começo de três dias de um prolongado feriado local, e todos os trabalhadores sorriam sem motivos - até o chefe aparecer no corredor, então todos faziam caras sérias. Um som semelhante a um arranhão eletrônico - se é que isso existe- emergia da velha impressora matricial - essas impressoras velhas eram imortais anciãs que ainda funcionavam, desde a época de que a empresa ainda era um prédio dividido entre área comercial e apartamentos. Alfred se aproximou do sujeito que esperava um maço de folhas ser engolido pela impressora, e tocou em seu ombro.
 - Ei! Poderia, por favor, desligar isso logo?
O homem mais jovem encarou o rosto aflito de Alfred.
 - Espere só mais quinze minutos e termino aqui. - falou com a rispidez com que colegas de trabalho, pertencentes à mesma classe, falavam entre si.
 - Ah não, não, não. Não aguento mais esse barulho. - apertou o enorme botão encardido de poeira da máquina e desligou-a. - Já acabei de imprimir os boletos, pode usar a minha que é mais silenciosa e rápida.
 - Está bem, não tem problema. Acho mesmo é que deveriam incinerar estas velharias.
 - Concordo com você. Estou indo embora. Limpe minha mesa depois de imprimir, não se esqueça. - na verdade ele não se preocupava se o homem deixasse de limpar sua mesa após utilizá-la, tudo que importava era que o maldito barulho da matricial havia parado, e as marteladas que sentia em sua cabeça diminuíram o ritmo.
 - Ok, pode deixar comigo.
Alfred não saiu de imediato; ficou observando atentamente o homem imprimir as folhas. Na vigésima primeira acabou a tinta do cartucho e também sua paciência de observador. Se preparava para sair quando o homem caiu no chão - provavelmente por ser um idiota distraído e ter tropeçado no próprio nariz -  com os cartuchos novos esparramando tinta no uniforme todo. Alfred iria começar sua torrente de xingamentos a distância quando percebeu que o homem estava sofrendo algum tipo de ataque; tremendo e sacudindo as pernas como se tivesse enfiado um prego no buraco da tomada por ingênua curiosidade infantil. Analisou bem a situação, viu outros chegando para socorrer o rapaz, viu o sangue dele começar a misturar-se com a tinta e pensou "Eu vou é sair daqui, não é problema meu".

Bateu o cartão na portaria e dirigiu seu carro até em casa. Sentou no sofá e ligou o aparelho televisor num gesto involuntário, uma memória muscular com anos de prática. Passado quinze minutos Alfred percebeu que estava assistindo televisão - e sem dor! - e projetou seu tronco arquejando-se para frente.
 - Eu estou curado! A dor de cabeça passou. Passou. - começou a rir, pois já havia se passado três semanas desde que a enxaqueca o atormentara na calada da noite pela primeira vez, e agora ele nem sequer tinha percebido quando ela acabara.
De repente a televisão chamou sua atenção pela primeira vez. Um repórter se apresentava em frente a um cenário de fundo que ele conhecia: a Investimento Ideal, uma das maiores empresas da cidade. O repórter pareceu esperar um sinal de que áudio e vídeo estavam checados, e só então começou falar:
 - Boa tarde a todos. Comunico que infelizmente um caso gravíssimo ocorreu neste fim de tarde aqui na Investimento Ideal, no departamento de controle financeiro. Jorge, de 25 anos, sofreu um caso de intoxicação pela tinta de uma impressora. Conversamos há pouco com o médico pessoal dele que comentou sobre a deficiência de Jorge, que sofria de uma rara tolerância a um composto químico da tinta usada nessas impressoras modernas. O chefe do departamento afirmou que estava ciente da deficiência do empregado, por isso lhe dera uma impressora matricial. Ninguém sabe ainda o motivo que levou Jorge a usar uma impressora diferente, e não poderemos entrevistá-lo pelos próximos quinze dias, pois o rapaz se encontra inconsciente e, infelizmente, poderá perder a vida caso não acorde nesse tempo. Obrigado pela atenção e retorno agora à central. Notícias em primeira mão é só aqui, no Jornal da Tarde.

Alfred apertou o botão vermelho destacado do controle e caiu no sofá. Pensou em muitas coisas, pois a culpa traz com ela uma caravana de pensamentos indescritíveis e atormentadores.
Pressionou as têmporas como fizera das outras vezes e reproduziu um longo silvo com os dentes.

A enxaqueca voltou. E voltou mais forte.

 - Adriano M. Souza -

                                                                                                 

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