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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Fantasias sobre fatos - Gary - 02

Uma calma noite se desvencilhava sob a paisagem de finas nuvens cinzentas que cortavam a lua crescente, fazendo-a se parecer com um sorriso banguela. A ideia de população civilizada no meio e dentro das torres de cimento na cidade de Lordevile era completamente ignorada na vastidão dos campos verdes onde Gary morava com seu pai.

Depois do jantar (que aliás era um dos momentos mais deliciosos para Gary, porque sempre que chegava da aula às sextas-feiras uma mesa, que parecia ter saído de uma máquina do tempo que regressara da era medieval, o aguardava majestosamente no salão de jantar) pai e filho subiam à plataforma circular - toda trabalhada em madeira - que projetava-se da casa e se apoiava em dois carvalhos que ainda cresciam juvenis e fortes. Lá de cima sempre vislumbravam as noites mais belas, mesmo que fosse um temporal, pois Tiago dizia a Gary que a natureza era bela até em suas fartas chuvas e relâmpagos.
Porém, hoje, estavam conversando sobre o que Gary contara que havia acontecido na sala de aula.
 - Filho, você pode seguramente abrir um debate sobre mitologia, porém não pode afirmar com veemência que acredita em seres fantásticos. - Tiago era um sujeito alto e de bom físico, quase escultural. Usava pequenos óculos retangulares que amenizavam os efeitos da deficiência da visão de seus olhos castanho-amarelados.
 - Lamento por isso, pai. Sabe, eles me olharam como se eu fosse louco. E o professor estava agindo de modo evasivo. Eles não compreendem... - Gary fazia sua brincadeira com os dedos novamente, enquanto olhava as nuvens afastarem-se do sorriso da lua devolvendo-lhe os dentes faltantes.
Tiago andou em direção à borda da plataforma entre os troncos de ambos os carvalhos, que ainda iam em direção ao céu por cerca de quatro metros até, por fim, terminarem em galhos pontilhados de folhas verdes. Ele estendeu as mãos para cima e - talvez por acaso - um vento soprou forte. A enorme de dupla de árvores, pilares-vivos da plataforma, balançaram lentamente se curvando para dentro, quase fechando um arco sobre o homem. O movimento reverso foi naturalmente mais rápido, lembrando duas catapultas montadas em direções opostas. O vento amainou e dois relâmpagos profetizaram a chuva no horizonte, a muitos quilômetros dali. Tiago virou-se, com os cabelos pretos sobre a face de uma cor dourada fantasiosa, e falou a Gary:
 - As pessoas seguem o seu caminho. Todos possuem os códigos secretos que reproduzem nossas raras formas de vida, mas poucos se importam com isso, sequer pensam sobre isso.
Continuou após uma longa pausa:
 - Filho, você poderia ter a idade de corpo e mente paralelas, mas eu acharia isso lamentável. Terrivelmente tal fato é muito comum por entre as torres de concreto como aquela - apontou para Lordevile - e você sabe disso.
- Sei sim, pai.
Tiago detectou verdade no filho e sorriu numa formidável paz interior. De repente pareceu preocupado e estreitou o olhar, perguntando:
- Mas ninguém percebeu o que você estava vendo? O que escapou de suas vistas pela porta?
- O quê, pai? Ah..não, acho que ninguém viu.
- É um bem maior que fazemos a eles. Não têm a preparação para ver o restante. Aliás, nem você tem, filho - e sorriu como se tivesse contado uma piada -, embora possa ver mais do que eles; o que é um prodígio.

Então a noite acabou para Gary quando a tempestade chegou à casa e seu pai pediu para que descesse para ir dormir. Tiago continuou lá em cima abaixo d'água e Gary não percebeu quando - e se - o pai descera.

No pequeno, mas confortável, quarto de Gary, o tamborilar da chuva era abafado pela espessa madeira que formava as quatro paredes do cômodo. Olhando pela janela, confirmava mentalmente a verdade que o seu pai dissera. Que a natureza era bela até em seus estrondosos barulhos produzidos pelas chuvas e relâmpagos. Porque não era como o som de um motor desenvolvido numa fábrica, que não deixava ninguém dormir até ser desligado. Porque o som da chuva, quanto mais forte, era como uma canção de ninar para humanos; trazia novas forças e possuía uma impressionante habilidade de nos acalmar.

 - Adriano M. Souza -


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