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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Uma dor bate em sua porta - Alfred - 03

Orientais comemoravam o ano novo chinês, imitando dragões e rufando enormes tambores, dentro da cabeça de Alfred.

A noite do primeiro dia de feriado foi de longe a mais cansativa de sua vida. Depois te ter ouvido no noticiário sobre Jorge, nem se lembrou quando desligara a televisão. Caiu no sofá e foi revirando-se, durante as próximas nove horas, como se revira a comida requentada encrustada no fundo da panela. Estava indo consultar o médico em seu carro parcelado em trinta e seis vezes; marcara um exame às 13:30.

 - Começou há três semanas, mais ou menos, doutor. - disse Alfred dentro de uma silenciosa sala branca, sentado numa cadeira acolchoada especialmente para pacientes.
 O doutor lançou-lhe um olhar analítico que indicou experiência, e que provavelmente havia lançado o mesmo olhar milhões de vezes durante a carreira. Aproximou-se de Alfred e examinou sua boca, ouvidos, nariz e os olhos. - Bem, estou vendo que é verdade, seus olhos já falam por você.  Sentiu alguma outra coisa além da dor de cabeça?
 - Não. Só foi isso mesmo. Mas, por favor, deve haver uma solução, um tratamento...está me matando. Matando.
 - Calma, ainda não sabemos a origem da dor. Quando esse é o único sintoma, podemos acabar receitando uma simples Dipirona ou até uma quimioterapia.
 - Está me assustando. - Alfred arregalou os olhos ao ouvir quimioterapia.
 - Apenas comentei. Isso seria um caso entre muitos. Como um ganhador da loteria, só que com a sorte ao avesso.
 - Menos mal, menos mal.
O doutor examinou mais algumas partes de Alfred, preencheu duas folhas de ficha e pediu para que o acompanhasse a uma outra sala onde realizaria um teste de visão, um de audição e uma série de passagens por equipamentos e cadeiras de nomes complicados demais. Por fim, após duas horas e meia de consulta - um recorde para Alfred - retornaram à sala de atendimento e o doutor franziu a testa lendo todas as folhas que acumulara durante o passeio técnico.
 - Bem, falando numa linguagem comum, seus níveis estão razoavelmente normais. Porém vejo que é um sedentário assumido; isso pode ter dado um empurrãozinho à sua suposta enxaqueca.
Alfred virou a cara, sentindo uma inevitável culpa. - É. Não posso negar isso. Mas então, qual o remédio?
 - Calma, as coisas não funcionam bem assim. A maioria dos exames que fizemos há pouco não têm resultado imediato, por isso terá que voltar aqui, vejamos - passou o dedo num caderno rabiscado de nomes - terça?
Alfred sentiu um enorme desânimo acompanhar sua enxaqueca nas nuvens pesadas em seu cérebro. - Ah, pode ser sim. Mas não tem nenhum remédio que digamos, alivie um pouco, até lá?
 - Como eu disse, as coisas não funcionam bem assim. - debruçou-se sobre a mesa e encarou-o - Poderia até lhe indicar um lugar digamos, mais secreto, para que você comprasse algumas coisas sob ordem minha. Mas isso lhe custaria algum dinheiro; e só em casos extremos dou essa mãozinha. Que isso fique entre nós.
 - Claro, c-claro. Pode deixar. Boca fechada.
 - Bem, lhe recomendo que tente relaxar o máximo que puder. Maneirar na alimentação e só; até sair os resultados de seus exames.

Alfred formalmente se despediu do doutor e em pouco tempo já estava no carro, dirigindo, voltando para sua casa alugada. Pensou naqueles médicos desonestos que apareciam nas novelas e nos políticos corruptos que ninguém pegava com a mão na massa. Podia até ter certeza de que políticos, em considerável proporção, eram corruptos, mas médicos ele nunca iria imaginar vestindo o mesmo terno.

Chegou em casa e tentou relaxar, aproveitar um dia de feriado; não conseguiu. A comemoração chinesa ainda rufava os tambores abafados de pano - puf, puf, puf - em sua cabeça. Uma ideia veio à mente num lampejo forte; o deixou sentindo uma palpitação. Já que ia demorar muito tempo até finalmente dormir - e mesmo assim iria ter pesadelos com juízes e todos os tipos de comemorações envolvendo tambores - resolveu vestir roupas adequadas para sair. Na verdade, roupas em tons mais claros, adequadas para uma visita íntima a algum doente. Iria visitar o seu colega Jorge; o semi-morto alérgico a impressoras modernas.

 - Adriano M. Souza -


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