Se havia algo que Alfred gostava em sua vida era
ser independente. Saíra de casa há quinze anos, quando ainda estava decidindo
em qual faculdade estudar. Achava a ideia de ter uma casa só para ele uma
maravilha, sem ter de se preocupar com nada que não fosse dele, e apenas dele.
Bem, pelo menos foi o que ele pensara no seu plano. As coisas na prática,
encaradas na pele, eram bem diferentes, como ele assim provara. Não conseguira
manter emprego e faculdade, e teve de parar com os estudos. Uma vez tentou
retornar para casa, nove anos após sua deixa, mas descobrira algo que sua mãe
nunca lhe contara nas ligações: que estavam falidos e seu pai havia falecido. A
princípio ficara furioso com a mãe por não ter contado sobre a morte de seu pai
por quase três anos. Depois compreendeu que ela se encontrava num estado de
choque, beirando à loucura. “Filho, meu filho – ela dizia com a voz tremida –
papai foi trabalhar e já volta. – e sorria como se não soubesse da verdade”. E
Alfred soube aos poucos que ela realmente não sabia, estava realmente
enlouquecendo; começara a confundir o passado com presente, trocar óleo de
cozinha por detergente.
Achava que a vida não podia piorar do ponto em
que estava e foi morar numa casa em Lordevile, a poucos quilômetros da casa de
Rita, sua mãe. A partir daí Alfred administrava a vida da mãe. Descobriu que
possuía direito legal nas antigas posses do pai, e que iria receber uma quantia
razoável de dinheiro mensalmente, assim como Rita. Pagava tratamento
psicológico para ela, visitava-a todos os finais de semana, começou um curso de
administração e conseguiu uma vaga de estagiário na Investimento Ideal no
contra turno.
Cinco anos depois Rita morreu em depressão profunda. Era um sábado, e
Alfred desembarcou em seu carro novo que estava na primeira parcela de trinta e
seis. Bateu na porta da casa da mãe por quase dez minutos sem resposta. Teve
uma ideia: verificar se ela ainda usava o mesmo esconderijo de chaves, dentro
de um vaso suspenso de samambaias ao lado da janela.
A chave estava lá; mas quando colocou-a no trinco percebeu que não ia
precisar dela. “Entre filho. Já fiz o jantar. Papai já está chegando.” Ouviu
sua mãe dizer numa voz estranha, como se ela estivesse prestes a dormir de
súbito. Então ele entrou e se aproximou dela, que estava sentada no sofá, para
lhe dar um beijo de surpresa. Iria contar as ótimas novidades: havia comprado
um carro novo quase sem juros, e havia assumido um cargo permanente na
Investimento Ideal, já recebendo um bom aumento.
Porém havia algo errado com Rita. A luz da sala estava apagada e a TV
ligada, e ela não parava de tremer; agitava os braços apoiados nos braços do
sofá. Alfred chegou perto o suficiente e colocou as mãos delicadamente em seus
ombros e se curvou para dar-lhe um beijo, e ficou horrorizado quando viu o
sangue que escorria pelo decote e já manchava o vestido cinza. Rita tremia
olhando para o teto, com seu corpo magro endurecido; sua pele branca agora
escurecia e seus cabelos que passavam do preto para o grisalho pareciam
magicamente perder todo o brilho. O garfo de cozinha cravado em seu pescoço,
fazendo com que a hemorragia fosse ininterrupta. Em suas mãos finas de unhas
bem feitas um bilhete apertado. Alfred não pôde conter as lágrimas e os gritos
de desespero. Imaginou mil coisas antes de conseguir ler o bilhete. Imaginou um
assassino entrando ali para dar um fim à mãe. Imaginou um seqüestrador que
deixara um aviso de que o próximo seria ele, caso não pagasse o valor exigido. Imaginou
que sua mãe talvez mentira sobre a morte do marido, e que na verdade brigaram
terrivelmente e ele viera hoje acertar as coisas, mas discutiram e tudo foi longe
demais. Outros pensamentos ainda mais desconexos e estranhos tentavam explicar
no interior de Alfred o que estava acontecendo ali.
Então leu o bilhete:
“Desculpe filho, ainda vivo com seu pai, ele está
aqui. Sinto ele comigo. Tenho que partir com ele. Amo você, meu Al, mas seu pai
é uma raiz bem mais forte no meu coração.
Desculpe filho, mas você já está grandinho para se
virar sozinho. Eu sei da sua promoção no emprego, ligaram aqui ontem. Escute:
você tem tudo para viver ainda, antes de encontrar seu pai e sua mãe de novo.
Nós sempre te amaremos. - Rita e Pedro”
O suicídio fora confirmado três dias depois. Sem ambos os pais, que constituíam sua ideia
de família, Alfred viveu meses – para ele pareceram décadas – no silêncio.
Estudava em silêncio. Trabalhava em silêncio. Até seu sono era silencioso, sem
nunca proporcionar sequer uma imagem descolorida de um sonho remoto. Passava os
finais de semana confinado na casa dos pais observando álbuns, lendo os livros
complicados de direito que o pai possuíra aos montes. Aquilo não estava sendo
uma terapia e sim uma tortura; não estava lhe fazendo bem, acabava por pensar
muitas vezes. Adormecia no sábado, no tapete da sala dos pais, e acordava na
manhã de domingo com uma fome terrível, percebendo que já ia fazer dois dias
que não colocava nada no estômago.
Certo dia começou a ler um livro do pai, o mais fino; Alfred gostava de
ler, desde que fossem livros finos. Chamava-se O Contrato Social, escrito no
século XVIII por Jean Jacques Rousseau. Leu o prólogo e se interessou,
folheando até por fim terminar o capítulo um, mas quando chegou ao capítulo
dois, virou o rosto tentando impedir lágrimas. O capítulo II dizia:
“A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a sociedade
da família. Os filhos permanecem ligados ao pai apenas pelo período de tempo
que dele necessitam para se manter. Tão logo essa necessidade cesse, o laço
natural se dissolve. Os filhos, eximidos da obediência devida ao pai, e o pai,
isento dos cuidados que deve aos filhos; todos se estabelecem igualmente na
independência. Se continuam a permanecer unidos, já não é mais naturalmente,
mas voluntariamente, e a própria família se mantém somente por convenção.
[...]”
Chorou por muito tempo. O choro transformou-se em lamúrias, que depois se
tornaram uma sensação de cansaço que o fez debruçar-se na mesa da cozinha e
adormecer. Depois se seguiram muitos outros acontecimentos, mas Alfred não
queria lembrar agora.
- Adriano M. Souza -
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